domingo, 6 de dezembro de 2009

QUANDO O OLHAR ANTECIPA O PENSAMENTO



Nasceu na pacata cidade de Silves, antiga capital do Algarve. Homem ímpar e artista multidisciplinar, construiu uma actividade curricular que excede o normal. É escritor de ficção, artista plástico, crítico de arte e Docente. Neste último campo, desenvolveu teorias sobre arte, fazendo-o através duma perspectiva distinta e dialéctica modernista que muito o caracteriza. O seu conceito de arte, foi tão inovador quanto necessário para a formação dos artistas que sempre pretenderam representar uma outra percepção do visível. Como ele próprio diz: - «o mundo é, em si, muito diferente daquele que percepcionamos». E envolve também aquela condenação ao impossível de que falava Picasso.
Formado pela antiga Escola de Belas-Artes de Lisboa, Rocha de Sousa foi professor durante o período conturbado do pós-25 de Abril, desempenhando um papel activo na reforma dos Estudos Superiores de Arte. A sua peculiar acção pedagógica e visionarismo foram factores preponderantes para a consolidação duma reforma que visava instaurar a Faculdade de Belas Artes na Universidade de Lisboa. Nessa deriva, ia expondo a sua obra plástica com frequência, individual e colectivamente, nas mais prestigiadas galerias do país. Bertrand, Galeria de Arte Moderna (SNBA), 111, Quadrante e Diário de Notícias são alguns exemplos. Rocha de Sousa já expõe desde 1965.
A sua obra encontra-se representada no acervo da Fundação Calouste Gulbenkian, Museu de Arte Contemporânea, Museu de Angola, Museu Nacional da Farmácia e colecções particulares portuguesas e estrangeiras. Paralelamente e no campo literário, escreveu ficção e teatro: «Amnésia», «Os Passos Encobertos», «Angola 61 - uma crónica de guerra», «A Casa Revisitada»», «A Culpa de Deus», «Belas-Artes e Segredos Conventuais» e «A Casa».
«Coincidências Voluntárias», obra sobre arte e vida contemporânea em Portugal, ,«A Estrela de Jonas», teatro com base numa novela de Camus, são obras no prelo ou em estudo por parte de editores. O seu mais recente livro, «Obra de Ninguém», aguarda data de lançamento para breve.
Rocha de Sousa, fez também pesquisa técnica no âmbito artístico, abordando e desenvolvendo teorias sobre arte publicadas na UA: «Didáctica da Educação Visual» e «Ver e tornar visível». Além de textos técnicos na revista «Sinal», para o Mestrado de Tecnologia da Comunicação Visual, incluindo o reaproveitamento da obra «Desenho»/área de artes plásticas. Editou igualmente livros de estudo e análise sobre artistas nacionais conceituados: Gil Teixeira Lopes, Helder Batista, Eduardo Nery, Dourdil e Pedro Chorão. Actualmente, faz crítica de arte no JL, com idêntico interesse pela escrita de ficção.
A Sétima Arte, foi talvez a sua paixão menos correspondida. Tendo realizado a título experimental, algumas peças ou filmes de ensaio muito interessantes, onde a condição humana era o principal tema abordado. Não obstante, Rocha de Sousa produziu, no domínio da pesquisa, objectos cinematográficos inovadores naquele âmbito, e séries televisivas de cultura em adequação ao plano pedagógico, como invenção de novos modelos expressivos. Dos produtos televisivos, citam-se casos como; «A Arte e as Coisas», «A Mão, «O Homem em Desenvolvimento», entre outros.
Neste sentido, é consequente, pela sua magnitude, dar a conhecer o homem e o artista a um mundo convenientemente míope, ingrato e mutilador. Falar sobre uma personalidade assim, com uma vida assim, onde os espaços vazios não conhecem lugar, é o deleite de qualquer biógrafo. Pessoalmente, pelo sentimento de amizade e admiração que nutro pelo artista, é um enorme privilégio poder homenagea-lo em vida. Contudo, e por muito que se diga, é impossível fazê-lo com a fidelidade que Rocha de Sousa merece. Nessa impossibilidade, deixo-vos com as suas próprias palavras. Palavras de carácter introspectivo que testemunham a grandeza de uma alma. 

Miguel Baganha 
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- O texto que se segue, funcionou como prefácio num catálogo da exposição do artista na Galeria Municipal de Arte em Almada, na qual foram abordados diversos aspectos da obra multidisciplinar do autor:

  «Ninguém me olhou de fora, a uma distância crítica, para que este livro viesse revelar o autor que porventura sou e a natureza da obra que produzi. O autor, ele-mesmo, tornou-se por isso também autor do presente texto: a viagem possível, assim, não beneficia das erudições específicas nestes casos, não decorre do afastamento afectivo por cada análise ou cada conclusão, não envolve sequer um verdadeiro olhar ao espelho, com todas as eventuais devastações dessa aventura sempre complexa. 
Alguém, por seu lado, na estrita condição de autor-autor, tentou falar-me de uma finalidade que eu já conhecia: ser vários é, normalmente, ser menos do que se poderia ser um único espaço de expressão. Esse artista pintor sustenta que só poderá realizar-se numa espécie de culminância da convicção e do fazer: procura o acto pleno, a obra perfeita. Isto espanta-me e inebria-me um pouco, mas não tenho com a obra, inevitavelmente, essa relação mística. Pelo contrário, vivi sempre o efeito de urgência perante o alarme em redor. Suspenso da memória e da revolta contra os desastres principais, a minha passagem pela oficina é um acto quase cego, de uma visão por dentro, recorta-se sobretudo como entrega desesperadamente afectiva ao novo espaço deserto que me espera de cada vez. Todos os quadros, bem vistas as coisas, são projectos falhados, são recomeços, sentimentos, dilacerações - ou a história por vezes longa de uma paixão que não parece destinada à permanência e termina quase de súbito, deixando na alma um mar de destroços afinal sem arrumação plausível. O quadro é isso, é esse encontro esplendoroso, é esse peso de restos a que muitos de nós recorrem depois, na casa destruída de todas as infâncias, para o recomeço de outros sonhos semelhantes, entre o espólio antigo, insubstituível e as alucinações contemporâneas. Mas, ao introduzir aqui um bloco antecedente de palavras, o meu intuito não é justificar precaridades, tornar desde logo inteligível o porquê de ter feito pintura e crítica de arte, ensaio e ficção literária, cinema e televisão, além de prosseguir um trabalho regular no ensino artístico. Alguém chamou a este conjunto de percursos «coincidências voluntárias», acreditando no interesse da sua análise e do seu confronto e naturalmente pela curiosidade de um autor se fazer coincidir (de forma voluntária) em vários. Não vou imitar o esforço dessa leitura em auto-retrato mas darei notícia breve da existência dos autores nos capítulos seguintes. Quero assinalar desde já, na linha da minha própria pesquisa sobre os modos de ver e de representar, sobre a memória e a ficção, o critério expositivo aqui utilizado: porque, através dele, não se pode isolar um preceito exclusivo de análise, nenhum auto-retrato de semelhança inapelável, nem tão pouco a explicação dos passos do destino antecipado pela história fragmentária de certos contextos. Mas é óbvio que, ao procurar aprender o essencial do meu «projecto poético», tive de reconhecer quanto me defrontei com a urgência do testemunho, preferindo uma arte cuja proposição interventiva configurasse de algum modo aquele pressuposto. Tratou-se sempre de uma opção difícil mas inevitável, cheia de retornos à raíz da pintura e do problema, envolvendo assiduamente o desconforto da contingência minimizadora e ainda o paradoxo da forma tender a integrar-se num suporte sociológico que entretanto denunciava pela suspeita apocalíptica. A construção da fala ou da mensagem, para quem já não espera a crença, é também, por outro lado, um problema áspero. Fui assim, de meio em meio, assumindo a necessidade de conjugar uma sensível variedade de planos de registo - memórias do real, gente viva, personagens da ficção literária, coisas pressentidas, tempos diferentes, o longe e o perto, as dilacerações próximas, os desastres quotidianos, os esquecimentos e os banimentos, as ideias cumpridas, as ideias abandonadas, um roteiro imenso de longos planos cuja síntese acabou por ser verbalizada e publicada no livro charneira OS PASSOS ENCOBERTOS. Em mim desmantelaram-se de súbito complicados castelos de cartas, cavaleiros de papel no alto da colina, e por fora, em redor, no espaço cultural português, aconteceu o irrevogável alastramento de novas mitologias. Cristina, que é personagem de OS PASSOS ENCOBERTOS, sugere-se como realidade concreta, explicando inspirações e derrocadas, para se tornar, enfim, Ana ou Dasy. Essas outras nomeações vêm referir, por um lado, a inevitável perda do sonho, destacando-se, por outro lado, como metamorfose dolorosa do ser amado (e da obra) no espaço que sempre foi suporte ou fronteira de um destino sísifiano - memória de Kafka, ideia convocada da resistência humana de Béranger, Jonas também, ainda pintor diante da tela vazia, já incapaz de distinguir, no brilho da sua estrela em declínio, a solidariedade da solidão.
Parece-me então eticamente indispensável esclarecer, perante aqueles que supõem vir a encontrar neste pequeno livro a análise e as razões todas de uma obra, que não é disso que se trata - mas antes, e de novo, de um trajecto plural, em parte ficcionista, divisão ainda de mim pelos objectos vividos ou por várias dimensões do imaginário. São viagens por concluir e personagens já nomeadas, gente real e figuras do sonho, um universo de sucessivos entrosamentos significantes, como na vida, onde tentei significar as linhas de força ou de sensibilidade que me serviam de rota para destinos diversos. Sou pintor, não nego, mas não descrevi quadros nem argumentei datas. Sou professor de arte mas não tracei nenhuma teoria pedagógica nem fiz a história das reformas para as quais dei contribuições efectivas e que o país, pela mão indecisa dos seus dirigentes, tem ignorado. Escrevi vários livros - poucos, em todo o caso - mas apenas cito um deles como referência indispensável ao sentido de certas ideias, motivos, convicções, esperanças e desencantos. Num tempo de especialidades e de especialistas, não me parece muito cativante o trabalho de quem se delibera plural. Há os que praticam uma pintura sem referentes, ou alheia ao sangue da memória, e não imaginam possível, no mesmo suporte, o aparecimento da notícia, do testemunho, um sulco de empenho pelos factos da incandescência contemporânea. Eu penso que sim, que esse tipo de coexistência tem cada vez mais sentido no mundo actual. Desconheço-me contra a corrente, apesar das diferenças e das divisões: pretendo sobretudo encarar as hipóteses formais capazes de sustentarem aquele empenho, mesmo que tenha de aceitar vários riscos e ser vários no território da minha própria identidade. Poderei então falar, sem reserva, de retratos antigos e de combates recentes - através da palavra ou da mobilidade cinematográfica. Respeitei assim, sem dúvida e até ao limite do possível, o quadro das vocações específicas da pintura mas considerando-a ainda como palco privilegiado da representação. Esta atitude, que tenho mantido desde os anos sessenta, permite-me tomar a linguagem plástica em termos profanos, isto é: libertando-a de convenções espúrias, das formas mudas, da fixidez dos achados. Aceitando as marcas do grito, ou da revolta, ou dos temas que atravessam quotidianamente o meu olhar, terei de colocar entre parênteses o princípio do dogma, o império dos estilos e das tendências afinal fechadas e transitórias, privilegiando, um pouco como no cinema e na literatura, a emergência de certas personagens ou memórias, o destino das Cristinas e das Helenas, as cidades da infância nos passos meio encobertos de várias ficções. Haverá assim, não a grande obra de sinal místico e projecção histórica inabalável, mas sulcos de um viver que nunca soube exprimir-se senão pelo campo aberto das «coincidências voluntárias», um autor desdobrando-se em autores, sem heterónimos nem pseudónimos, a deixar o outro e os outros florescer em si mesmo 
Rocha de Sousa 1987 
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 "FERIDA IRREPARÁVEL"   
 (acrílico sobre tela, Rocha de Sousa)
















«Ver e representar podem passar por vários canais de análise e especulação mas a sua passagem para o fazer, vem constituir-se na grande plataforma dos modos de pensar o mundo. Em liberdade, naturalmente.»

Rocha de Sousa