quarta-feira, 14 de março de 2012

LANÇAMENTO DO LIVRO - "LÍRICA DO DESASSOSSEGO" de ROCHA DE SOUSA

Certos críticos dizem que a linguagem (leia-se método de escrita) é o que torna um livro insuportável ou fascinante. Oscar Wilde disse que «não há livros morais ou imorais: apenas livros bem escritos ou mal escritos». Embora concorde, parcialmente,  com a afirmação do notável dramaturgo irlandês, penso que o nível literário de um livro não deve ser avaliado segundo critérios pessoais que assentem em bases ideológicas religiosas ou políticas (o convencionalismo unilateral e linear sempre teve um efeito castrador). Se o leitor é simplesmente incapaz de compreender ou de concordar com uma determinada linguagem isso não lhe dá o direito de criticar negativamente um livro para outros, cujo nível intelectual ou vivencial se encontre no mesmo comprimento de onda, o mesmo livro pode tratar-se de uma obra literária de extrema qualidade. Para se compreender um livro, para se entender a sua verdadeira linguagem, é preciso, por vezes, procurar ler nas entrelinhas e descobrir certas verdades que estão ocultas.

Rocha de Sousa, pode servir de exemplo para esta introdução. O erudito escritor algarvio já habituou os seus leitores a uma linguagem muito peculiar, subliminar na sua mensagem de fundo e sempre tocando profundamente a condição humana. Todo este contexto sisifiano é alimentado pela sua invulgar capacidade imaginativa, onde, por meio de uma refinada adjectivação, nos leva a um inevitável encontro com nós próprios.

 

«Lírica do Desassossego, procura reinventar uma personagem da própria obra escrita e fílmica do autor, percurso existencial de certa natureza psicilógica que atravessa um imaginário feito de imagens e gentes de vários quotidianos, entre simbologias pictóricas a para de registos onde a tonalidade sensual trava certa batalha por um retrato de mulher, impossível mas conotado com lugares e patrimónios de referência.»

 

O livro é maravilhoso, engraçado, espirituoso, vibrante e pleno de sátira sobre a dúbia razão de certas escolhas feitas na idade da razão. Uma história pungente e actual. Imperdível. Um retrato pintado em tons de ocre, quentes e secos, como a savana de África.

Miguel Baganha 

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Pórtico de «Lírica do Desassossego»:


Ainda se lê, muitas vezes, em prefácios de certas obras, a propósito de um texto, história, aparente correspondência de factos, a seguinte nota: qualquer semelhança entre a realidade e esta obra é pura coincidência.

Eis o que acontece com o livro «Lírica do Desassossego». Para muitos, contudo, nestes e noutros casos, a coincidência, citada de tal forma, não passa de um aviso furtivo, encobrimento de diferentes veracidades. Há quem a entenda, por exemplo, como providência cautelar, antecipação da desculpa ou alteração decisiva da cor de um novelo que se desenrola sem montagem. 

«Lírica do Desassossego», assegura o autor, coincide no título e na crise de um vídeo que (ele próprio) realizou, há largos anos, com alguém que estava de passagem por Lisboa. E acrescenta, por sua vez, que a coincidência dos títulos das duas obras é sobretudo um modo de registar de igual maneira um romance e um filme, apesar da diferença de conteúdos formais. Haveria problema se o filme estivese publicado e pertencesse a outro autor.

Rocha de Sousa tem insistido numa espécie de paradoxo a propósito de alguns dos seus trabalhos, procurando tornar clara a ideia, para a mesma peça, da diferença na semelhança. De facto, no caso do filme, convivemos com uma situação residual da memória a despertar, na personagem, um comportamento paroxístico cuja fase inicial se enovela, em semelhança, com uma espécie de performance alucinatória em que as imagens resgatadas da memória vêm ganhar semelhança na cena em que a mulher voyeurista acaba por cortar, com grande esforço, o cabo que a envolve.

No livro, a personagem é acompanhada desde a adolescência, mostrando-se desenquadrada em muitas situações, pacífica noutras, insinuante ou caprichosa ainda, como se o seu meio não fosse mais do que uma porta de entrada para espaços de devaneio, desde cedo de natureza erótica e sexual, uma ideia transgressiva e inconsequente da pintura. Ela casa cedo e é breve no desempenho. Volta a casar, traindo as normas das festas e delírios. Os filhos quase não existem. O seu cordão umbilical não é transformado em corda mas em auto-sequestros e libertações durante viagens. Após o último casamento, ou união de facto, assistimos ao desmoronamento desta mulher, de África para Portugal, entregue ao zelo contingente de outros homens, presa ao álcool e a uma inteligência que descobria o impossível e nada propunha para realizar. A solidão vem desvendar essa mulher na indigência; e, como sempre, invejando e amando os outros, já sem a mini-saia de outrora, afeita a opas lineares mas nas quais escondia a mutação do corpo e talvez da alma, sempre voltaria a vários vinhos consumíveis. Entidade do mundo contemporâneo, moldada por um colonialismo disfarçado, destinada ao luxo e à lassidão, esta figura, passando por situações abjectas e entregas surdas, pintando coisas absurdas e saturadas na cor, vai perder a sua própria história: o que fazer da comida seca, que verdade ainda lhe poderá caber por semelhança a todos os difusos vínculos genealógicos?

Os poços de fealdade nesta vida, confrontada com as seduções actuais, é uma beleza lírica apesar de todo o desassossego.

Sousa Carneiro

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